Bem-Vindo

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Anjo de prata


Vazio. Era isso o que sentia, ou que não sentia, como queira. Não era solidão, nem tristeza, apenas a ausência de tudo. E convivia muito bem com isso, me sentia completa.
Um dia, porém, o vi na vitrine. Soberbo, imponente, com asas de prata que varriam todos os campos da minha alma. Busto fosco levemente arredondado, rosto para baixo, pecaminoso. Mãos em união rígida e eterna. O véu, também de prata, lhe cobria a silhueta torta, deslizando em ondas sobre seus pés. Senti dentro de mim o vazio se preencher, cheio de dúvidas e angústias. Voltei a apressar o passo.
Numa outra tarde, encontrei-me a fitar, hipnótica, a tal estatueta. Desta vez, uma cortina de chuva escorria pelos céus, lavando todos os pecados terrenos. Me protegia com um guarda-chuva cinza, na fria esperança de ser poupada de tal juízo. A vitrine agora chorava, como a estatueta. Senti de súbito o vazio pesar, como um grande buraco negro sugando todas as minhas forças; me apoiei na vitrine, cambaleante, até recuperar o fôlego. Sai.
Na terceira semana, não aguentava mais ficar sem meu anjo, e o comprei por um par de notas. Embrulhado num jornal da semana passada, levado em baixo do braço até meu pequeno e caótico apartamento, lá estava ele. Agora poderia admirá-lo o quanto quisesse, passar horas a fio, filosofando. Quando chegava em casa cansada, ele era meu conforto, minha salvação.
Notei que as pálpebras, apenas riscos no metal fosco, estavam fechadas. Cego, meu anjo era cego. Vagava pela vida com a esperança de guia, rezando para encontrar alento para sua alma. E não é isso o que todos nós fazemos? Sempre em busca de alicerces, que possam nos sustentar, nos ajudar a levantar ou nos impedir de cair? Triste é o ser que vive vagando, solitário, em busca de amparo. Alguns sortudos o encontram na fé irrefutável e irracional, uns o encontram apenas nos outros. E um mundo de sombras disformes se transforma num alegre mundo de rostos sorridentes.
Meu anjo não precisava ser sorridente para ser completo, e ao seu lado conseguia me acalmar. Não é que minhas angustias desaparecessem, pelo contrário, se multiplicavam, mas minha mente se clareava e podia pensar no trânsito contínuo de emoções e sentimentos que me bombardeavam por dentro de maneira opalina e racional. Inquietava-me o espírito ter que deixá-lo e seguir rumo ao meu ofício. Trabalhava em um pequeno escritório de advocacia, bem no centro da cidade. À noite as ruas se enchiam de luzes neon, e letreiros luminosos nos convidavam a beber e dançar. Passava pelas portas escancaradas e convidativas de boates, olhando sempre para as pedras monocromáticas que compunham o mosaico da calçada. Ia em direção ao metrô. Dentro deste, as leis da física sobre dois corpos não poderem ocupar o mesmo espaço não se aplicavam, e jazia pendurada em uma ínfima barra de ferro tentando em vão não me afogar no mar de pessoas. Chegava em casa exausta, e abrigava meu vazio no meu anjo de prata.
Ao conversar com meu anjo, percebi o quanto os seres humanos são desprezíveis. Podem, tão facilmente, fazer outras pessoas sofrerem... mentem, roubam, traem,assassinam. Não... não mais deixarei eles me afetarem, ficarei protegida, abrigada em enormes asas de prata. Que suas asas sejam minha força, meu baluarte. Que eu consiga escapar dos pecados humanos, até ascender ao céu, rezei. Olhei pela janela, o céu não tinha estrelas, apenas núvens acinzentadas; ele padecia, tóxico. Fui, cada vez mais, ficando reclusa em meu apartamento, com apenas a companhia do meu anjo de prata. Enfim as férias de verão chegaram, e posso me ocupar de coisas mais importantes do que pessoas. Gosto de ler sobre mitologia, sobre os antigos ensinamentos, sobre as leis de uma outra época. Leio constantemente para meu anjo, sinto, porém, que é ele quem está, na verdade, lendo para mim. Quase consigo ouvir sua voz... suave, ritmada, gentil. Não abre os olhos, não lê as letrinhas negras em linhas, apenas sabe-as. Devoraste-as em épocas anciãs, e agora compartilha suas histórias comigo.
Acabei adormecendo; não que fizesse muita diferença, posto que a vida encontra-se cercada de ilusórios sussurros e plumas. Sonhei com um corredor, tão alto que não conseguia ver o teto... talvez fosse o céu. Talvez. As paredes de mármore falavam entre si na lingua dos anjos, sem deixar-me entender nada. Por que fazem isso comigo? Não sou amiga dos anjos? Não dei meu fraco coração a um par de asas de prata? Irrito-me. Esmurro com força as paredes, ouço risadas. Uma presença invisível me consome, deixa-me em alerta, toda arrepiada. Corro. Risos, risos, risos. Chego ao fim do dantesco corredor, e lá está ele, a me esperar, numa sacada de um metal brilhante. Abre, enfim, os olhos. Olhos de prata, como o esperado, fitam-me hipnoticamente. Atrás de si jaz o céu e apenas o céu. Estrelas brilham mas não há lua a vista. Estende, em toda sua majestude, suas asas de prata. E não está mais na sacada, ou no corredor de mármore, está no infinito negro. Suas asas rígidas não se movem, e vejo-me a saltar em sua direção, numa tentativa frenética de ajudá-lo. Caindo, caindo....
Seus olhos estão fechados agora. Gotas escuras mancham suas asas. Elas não poderiam mais me proteger, mas agora iria com elas para longe. Para bem longe dali, onde ficaria em sua companhia para sempre. Sinto-me entorpecida... as risadas viraram gritos, gritos de horror. Infelizes pessoas que não têm seus próprios anjos... gritem, podem gritar. Debilmente, estendo minha mão para acariciar a face lisa e fria do enviado dos céus. Uma estranha coloração carmim segue meus dedos trêmulos enquanto percorro o caminho de sua face até a ponta do queixo. Durma, durma meu anjo....

1 comentários:

V.M. disse...

Seus textos são repletos de simbologia e apelo metafísico... E tão trágicos, que chegam a ser lindos. Com um quê sempre shakesperiano (alegria - tristeza - alegria/tristeza).

Bem ultrarromântico... Fácil de se notar suas influências x )

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